As relações entre Janus e Vesta

Há duas divindades no panteão romano que se apresentam como deuses complementares. Embora não se relacionem no mito, relacionam-se constantemente nos rituais religiosos e, especialmente, no seu caráter liminar. Janus era o deus que presidia passagens e transições, e Vesta, a deusa a quem estava consagrado o focus urbi, símbolo da vida e da prosperidade de Roma.

Como deus dos inícios, os romanos dedicavam o primeiro dia do ano e o mês de Janeiro a Janus. Suas honras sucediam dois eventos muito importantes no seu calendário religioso: as Sāturnālia, realizadas entre os dias 17 e 23 de Dezembro, e o Diēs Nātālis Sōlis Invictī, celebrado no dia 25 de Dezembro ―data em que os antigos acreditavam ocorrer o Solstício de Inverno. De maneira bastante complementar, o festival dedicado a Vesta {Vestālia} tinha lugar no dia 9 de Junho, antecedendo a ocasião do Solstício de Verão.

Janus Bifrons. Adolphe Giraldon (1911). Larousse mensuel illustré, Jan. 1911.

Deus bifronte, Janus conhecia os eventos passados e podia perscrutar os eventos futuros, sendo também reconhecido pelos romanos como o númen que favorecia todos os inícios. Vesta, por sua vez, era a divindade à qual estavam dedicados a lareira e o fogo doméstico, no microcosmo da domus, e o focus urbi no macrocosmo da cidade e dos seus domínios, reconhecida como deidade protetora de todas as conclusões, no âmbito público ou privado. Portanto, Janus era invocado no começo de qualquer atividade religiosa no mundo romano, enquanto nenhum rito ou cerimônia poderia ser finalizado que também se encaminhassem as devidas honras a Vesta: «Jānus primus, Vesta extrēma».

Interessante perceber que Janus e Vesta não mantiveram quaisquer relações mitológicas. Cultuado desde os contextos mais remotos, Janus era uma divindade primordial em Roma. Raras são as referências à sua ascendência. Uma das alternativas do mito contava-o entre os filhos de Caelus (Céu) e Tellus (Terra), em relação fraterna com os deuses Saturnus e Ops. Uma versão mais evemerista identificava-o como mortal que fora divinizado durante a Idade de Ouro.

Matriz de selo com efígie do deus Jānus. Lincolnshire (Reino Unido). c. 1300-1400.

Frequentemente, parece não haver distinções claras entre os atributos de Janus e Saturnus, às vezes confundindo-se também com as características cúlticas e ritualísticas de Júppiter. Chevalier e Gheerbrant identificam-no como um deus criador oriundo de cultos primitivos, o que explicaria sua presidência sobre o primeiro dia do ano e o primeiro dia de cada mês, sua relação com os nascimentos e os inícios. Provavelmente ele foi um deus importante ou chefiou um panteão arcaico, mas acabou perdendo as suas funções para outras divindades, convertendo-se naquilo que Mircea Eliade chamou de deus ōtiōsus.

Se Janus foi uma divindade celeste que viu seu poder diminuir em função de deuses com atribuições mais práticas (Saturnus relacionando-se à agricultura, Jovis à ordem cívica), talvez jamais saibamos. Independente de como se desenvolveu a identificação das suas funções religiosas, percebemos nos seus atributos certa estabilidade: como deus liminar, presidindo sobre as portas e as passagens físicas, mas também sobre transições abstratas (como a passagem das estações e dos anos). Neste último aspecto, Saturnus e Janus estão interseccionados: o primeiro é o deus que destrói o velho para abrir passagem ao novo, enquanto o último preside sobre os inícios e os nascimentos.

A principal distinção entre JanusSaturnusJúppiter residiu na sua posição no panteão. Saturnus era reconhecido como um deus primitivo, expropriado de sua liderança mítica pela rebelião de seus filhos, capitaneados por Júppiter. Também referido pelo nome Jovis, este deus estava claramente posicionado entre as principais divindades do panteão latino. Júppiter e Vesta compartilham a sua posição entre os deī consentēs. Janus, por seu turno, figurava entre um grupo de divindades menores, consideradas exclusivamente romanas, chamados deī indigetēs.

Apesar de uma equivalência quase universal entre a deusa romana Vesta e a grega Héstia¹, ambas ressonando a raiz proto-indo-europeia *h2wes- {ser, permanecer, morar ou habitar}, acredita-se que a primeira foi cultuada em solo itálico antes do contato com os helenos. Destarte, Vesta poderia ser contada entre os deī indigetēs latinos, juntamente com Janus. Esta proposição talvez se relacione à imobilidade das representações míticas da deusa, resultando na sua concepção como «uma personificação da ideia do lar» (Cf. Grimal, 2019; Chevalier & Gheerbrant, 2019), e não como uma divindade plenamente antropomórfica.

Os deī indigetēs comumente expressavam ideias e abstrações ao invés de figurarem como personagens mitológicas de forma e características humanas. A percepção de uma Vesta primordialmente relacionada a essas divindades e apenas tardiamente sincretizada com Héstia se torna um pouco mais evidente quando pensamos que em algumas ocasiões a deusa era representada pelo próprio fogo sagrado. Contudo, estátuas antropomórficas de Vesta figuraram desde muito cedo no Forum Romanum.

Relevo votivo dedicado à deusa Vesta. Roma (Itália), c. 140-150 ᴀEC.

Contra o argumento de sua participação entre os deī indigetēs está a sua associação com Júppiter, Juno e os outros deī consentēs, as doze divindades principais do panteão latino. Característica distintivas dessas divindades é a sua correlação com os deuses helênicos, indício de sincretismo religioso entre os cultos grego e romano. Curioso notar que Vesta figurava neste grupo de doze divindades maiores, enquanto a tradição atesta que a sua contraparte helênica cedera o seu lugar e as suas honras no Dōdekátheon² a Dionysos³, após a divinização do filho de Sêmele.

Tanto no panteão helênico quanto no panteão latino, Héstia/Vesta é uma deusa virginal, cuja opção pela castidade fora assegurada pela autoridade máxima entre deuses imortais: Zeus/Júppiter. Como primeira filha nascida de Kronos/Saturnus e primeira deusa olímpica, coube-lhe a presença junto ao fogo sagrado nos espaços domésticos {gr. ἑστία / lat. focus} ―daí a sua referida imobilidade―, onde desenvolveu-se o culto familiar (o culto privado). A urbs rōmāna também tinha o seu fogo sagrado {focus urbis}, colocado sob os auspícios de Vesta desde o reinado de Numa Pompilius.

Esta imobilidade, ao mesmo tempo que separa Vesta das outras divindades nos mitos, confere-lhe importância no culto e nos ritos. Ela é deusa do fogo, da pureza e da perfeição. Como divindade ígnea, seu festival se realizava durante o período mais quente do ano, quando os dias são mais longos que as noites. Em sua atribuição como deusa da pureza, Vesta era a protetora das lareiras, que representava o coração da domus e do seio familiar, mas também estava associada aos limiares, como as portas e soleiras ―assim como Janus, deus por excelência das passagens.

Evidenciemos, portanto, o aspecto de complementaridade estabelecido entre Janus e Vesta. A divindade masculina parece estar associada aos espaços limiares que apontam para fora, à passagem quando há sentido de trânsito e, por conseguinte, evidências de transformação: os portões que se abrem para a guerra, os ritos que se iniciam para as decisões magistrais. A deidade feminina, de modo complementar e oposto, caracteriza os espaços limiares que convergem para o interior: o portal e a soleira que as noivas cruzam para adentrar a casa, estabelecendo-se na domus e dedicando-se ao focus domesticus.

Segundo as fontes antigas, após a fundação da cidade os sabinos tentaram invadir o Capitōlium, mas um prodígio realizado por Janus obrigou as forças sabinas a retrocederem. Em gratidão, Numa Pompilius ordenou a construção do Iānus Geminus e instituiu que suas portas estivessem sempre abertas enquanto os romanos estivessem guerreando para que o deus pudesse sempre vir em seu auxílio. Na esfera pública, o Iānus Geminus distinguia-se da Aedēs Vestae do mesmo modo que suas divindades se distinguem e se complementam: enquanto o templo do deus permanecia sempre aberto e ostentava a potestās (o poderio) dos cidadãos romanos frente às ameaças externas, a residência da deusa representava um espaço privado ―lugar onde, junto ao fogo da deusa, crepitava a própria vida da cidade―, sob o cuidado constante das Virginēs Vestālēs e a vigilância do próprio Pontifex Maximus.

Notas:

¹ Em língua grega, Ἑστία {Hestía}.
² Os Doze Deuses do Olimpo: Δωδεκάθεον τοῦ Ολύμπου.
³ Em grego antigo, Διόνυσος {Diónȳsos}. Erroneamente chamado Dionísio.

Referências em português:

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.
GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

Referências em língua estrangeira:

BEARD, M.; NORTH, J.; PRICE, S. Religions of Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. Vols. 1-2.
LIPKA, M. Roman Gods: a conceptual approach. Leiden: Brill, 2009.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑