Negligência e negacionismo

Bob Enyart, Cirsten Weldon, Dick Farrel, Doug Kuzman, Frédéric Sinistra, Hana Horka, Marc Bernier, Olavo de Carvalho, Phil Valentine e inúmeros outros negacionistas famosos morreram de covid-19. Muito além de demonstrar um ceticismo particular contra a eficácia dos imunizantes (caso alguém tenha dúvidas: vacinas funcionam, são seguras e eficazes contra todas as variantes), esses indivíduos se utilizaram de sua projeção para espalhar fake news e conspirações que provavelmente afastaram muitas pessoas dos imunizantes. Utilizaram do seu direito à opinião e à livre manifestação de ideias para desencorajar as pessoas a se imunizarem contra um vírus altamente infeccioso e, por vezes, letal.

Sua morte pela doença respiratória ocasionada pelo coronavírus —vírus imaginário (sic), segundo Olavo de Carvalho— apresenta-se como ironia trágica ao cenário de polarização política e emburrecimento do debate público no Brasil, nos Estados Unidos e por todo o Ocidente. Parece um aceno das divindades indicando o caminho da salvação: a Ciência!

Diante do fim irônico, não é absurdo nós pensarmos sobre a questão e nos perguntarmos se este era o destino dessas pessoas ou se sua morte decorreu da própria irresponsabilidade. Enquanto alguns negacionistas contraem o vírus e sobrevivem para continuar o desserviço de espalhar notícias falsas e mentiras absurdas sobre os efeitos colaterais da imunização —inclusive fazendo uso político da morte de uma criança, comprovadamente não-relacionada à vacinação—, outros encontram este fim trágico e meio bizarro.

As Três Parcas. Alexander Rothaug (1910).

Os antigos gregos e romanos faziam distinções entre o Destino e a Sorte. Representavam o Destino as divindades que escreviam os principais eventos de uma vida e os entrelaçavam a outras vidas. Na Grécia, eram Aisa [Aîsa] e as Moiras [Moîrai]. Em Roma, eram as Parcas [Parcae]. Já a Sorte era representada por uma deusa que andava errante pela Terra, distribuindo favores e azares. Os gregos chamavam-na de Tykhê [Tykhḗ], os romanos a chamavam de Fortuna [Fortūna]. Uma coisa que ambas culturas tinham em comum era a certeza de que não se deveria brincar com a Sorte.

Se esses negacionistas estavam destinados a morrer de covid ou se seu falecimento se deu por mero acaso, por azar (má sorte), será indiferente. O Destino, nas concepções dos povos antigos, dobrava-se inevitavelmente e conseguia reorganizar os eventos para viabilizar seus predicados. A Sorte, ao contrário, manifestava-se num átimo e depois voltava a fugir desvairada pela vida. Capturá-la ou predizê-la era impossível. Na ausência da Sorte, imperaria o azar —a não-sorte.

Fortuna com a Cornucópia.

A palavra Fado se origina do latim fātum, cujo significado é «destino», «senda» ou «sorte», compreendendo tanto o sentido de Destino [as Parcas], quanto o sentido de Sorte [Fortuna]. Remete à certeza de que os eventos humanos não estão definidos puramente pelo Destino, mas são constantemente atravessados pela Sorte. Se não é fácil encontrar-se fortuitamente com Tykhê/Fortuna, melhor precaver-se com amuletos apotropaicos que afastassem o azar. Noutras palavras: não dar sorte ao azar!

Claro: era necessário recorrer à superstição, pois não existia Ciência. Isto é bastante salutar e compreensível quando estamos falando de sociedades que existiram há vinte e cinco séculos, três milênios. O seu recurso e panaceia para todas as intempéries, pestilências e epidemias eram a superstição e os rituais mágico-religiosos. Hoje, não vivemos a mesma carência de recursos científicos e tecnológicos, portanto, a negação dos saberes especializados e as teorias conspiratórias deveriam ser consideradas posturas perigosas e repreensíveis.

Quando se está saudável e o perigo da infecção parece distante, é cômodo duvidar da Ciência e parece benéfico ao ego achar que se está pensando fora da caixa e na contramão do mundo. É uma sensação de súbita inteligência e poder. Contudo, incorre-se no erro que os homens e as mulheres da Antiguidade queriam evitar pelo apelo às superstições: não dar sorte ao azar. Hoje, não adianta apelar aos amuletos, aos curandeiros ou às soluções simples da Internet. Contra o azar: a vacina.

No século XXI, a morte não pode ser considerada uma ação do Destino. Nós não morremos porque as Moiras/Parcas cortaram um fio: morremos porque fomos negligentes com a saúde, morremos porque fomos irresponsáveis (ou somos vitimados pela irresponsabilidade de outros), morremos porque o governo não investiu o dinheiro dos nossos impostos no sistema de saúde, morremos porque não existiu uma política pública que providenciasse imunização, morremos porque fomos ignorantes e duvidamos da eficácia das vacinas —cujos números são públicos e inquestionáveis.

A causa mortis, portanto, é negligência, negacionismo… burrice.

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